Puxaste-me os cabelos no cruzamento da Rua Nova de São Mamede com a Rua do Salitre. Eu disse-te, Não, espera um bocado, mas tu sussurraste-me, Estás cansada...
Então deixei cair o meu coração no passeio e tive que me voltar e baixar para apanhá-lo. A rapariga que ia atrás de mim tirou os headphones dos ouvidos e avisou:
- Cuidado, verifique se é o seu.
Virei o coração às avessas, mas no verso não havia etiqueta com o meu nome.
.
Tive um sonho (finjamos que foi há muito tempo) como uma premonição. E era verdade. Ele dizia, Olha que estão a fazer pouco de ti, e eu abanava a cabeça orgulhosa.
- Descola, descola!
Gritou-me uma rapariga de franja demasiado curta e só então percebi que estava agarrada à perna dela e não podia/devia porque as portadas das janelas do meu quarto estavam a bater com o vento (alguém tinha que fechá-las).
Bati com as mãos uma na outra, a limpá-las desse pó pegajoso de um certo egocentrismo-insegurança-infantilidade.
Um certo sentimentalismo com cheiro a mofo, e uma altivez (talvez) nos ditames de menina-dona-do-seu-nariz. Pensei que sim, que não e que não, não era para mim.
Ainda uma certa vitimização, auto-condescendência, que dão arrepios na espinha e eu pensei não, sim, não era para mim.
Mas como numa dança concertada,
essa ponte
esse doce
que se juntam em conspirações alegres
contra uma imagem
de alguma coisa
que talvez não exista sequer...
Eu queria ser livre.
.
Ao subir a rua inclinada, o guizo soava como quem diz: FOGE!
Mas eu, na corda bamba das convenções, um pé depois o outro, não soube o que fazer.
E o guizo,
FOGE!
mas eu, no chá das cinco das sete das oito, sem saber que dedo mindinho espetar (o meu, o dela), ouvi o som ao longe, mas não dei pelo formigueiro em todo o corpo.
Se um cão me atacar e ficar com raiva,
se aquele carro me atropelar,
se aquele pedaço gigante de cimento cair em cima da minha cabeça,
se os risos das pessoas me matarem
vou para o céu (com minúscula).
Uma confiança quase inconsciente-automática em
...mas...
Era como se estivesse a olhar para as ruas, para os prédios, e mesmo para os guardas como se fosse a primeira vez.
Sacudi com uma mão impaciente o rio que olhava para mim através de uma certa névoa, porque não me estava a ajudar
hoje
a ganhar forças para chegar a casa.
Quando chegar, isto, isto e aquilo.
Antes ela dizia: Ai, que caio, quem me acode?
E agora: Anda cá, menina.
E depois: Eu pego as criancinhas p'ra fazer mingau.
Eu: Não sou uma criança!
Ela: Ah ah ah!
E outra: Eh eh eh!
E outra (?): Ih ih ih!
E eu chorei e chorei e ri e chorei e ri
Então, sentada à direita dele...
Mas esperavas alguma espécie de simpatia?
E eu,
enrolei as sílabas na língua,
Sim
PA
ti
aaaa
Sim... sim...
papapapa
Sim-pa
ti . ti . ti . tititititi
a! a! a?
Simpatia - substantivo feminino (feminino! ah ah)
(...)
4. amabilidade; afabilidade
(...)
Mas é difícil deixar crescer uma barreira de sorrisos como quem deixa crescer a barba.
Mas tu, teimosa, sorrisos.
Mas sorrisos não compram
Nem (hein?) elogios compram
Nem nada.
E se um dia te insultarem, cospe-lhes na cara e grita impropérios (ou não)
Se um dia se atirarem para cima de ti com uma faca nos dentes, dá muitos pontapés no ar e acorda.
Se um dia estiveres a saltar de um prédio em chamas respira fundo e conta até dez.
Há um nó na garganta e nem é por isto ou por aquilo, mas simplesmente porque.
Não quero mais dizer que sim e sorrir docemente com a cabeça inclinada para um dos lados,
quero odiar brevemente e depois esquecer.
E afastar com mãos tranquilas tudo o resto.