Mar 25, 2007

Histórias de Ócio

Desde o seu último aniversário que sentia que a cabeça lhe pregava partidas de criança.
Na penumbra de um quarto quase vazio, apareceu-lhe, certo dia, como numa visão, Lola, com os seus totós infantis caídos simetricamente nos ombros pequenos.

- A tua tia está grávida.

Mas a silhueta feliz, barriguda e familiar, que então apareceu, não era do seu sangue.

- Não é minha tia.

Desde então, as suas noites foram povoadas de sonhos de bebés no ventre de mães incógnitas, barrigas sem corpo, e um sem-número de objectos esféricos do dia-a-dia. Um dia sonhou com uma laranja do tamanho de uma montanha; de outra vez sonhou com um bicho-de-conta que, ao desenrolar-se, explodiu; uma das vezes, chegou a sonhar com um ovo redondo, que se partia para deixar sair um pássaro quadrado, que abria a boca para deixar escapar um elefante minúsculo, sem joelhos.

Um mês depois de ter tido o primeiro dos sonhos "esfeéricos", como gostava de os chamar, encontrou um rapaz muito alto num comboio que talvez tenha existido apenas na sua imaginação. Ele pediu-lhe, sem abrir os lábios, que lhe cantasse uma ária antiga, que lhe soou vagamente a Orfeo e Euridice, mas que não sabia precisar. Ela encostou a cabeça do rapaz contra o seu peito maternal e enrolou-lhe os caracóis castanhos em notas longínquas de um passado feliz. E o rapaz disse, sem nunca abrir os lábios, Sou feliz aqui, não trocava o teu colo pelas minhas brincadeiras de criança.
Depois desse encontro não voltou a ter sonhos "esfeéricos" e infundiu-se-lhe no espírito uma paz ancestral que ela conseguia percorrer quase até ao primeiro de todos os homens.

Passado um ano, voltaram os sonhos recorrentes, mas desta vez de terror. Num deles, matou a tiro um homem com cara de Rottweiler, e sentiu as mãos encherem-se de sangue escuro e reparou que o sangue não era da vítima, mas que era ela que o vomitava e chorou lágrimas de raiva e frustração e arrependimento mesmo antes da cabeça de Rottweiler se tornar na cabeça de um bisavô que nunca chegou a conhecer.

Começaram então as febres altas, os delírios que a levavam a sair em cinta pelas ruas da cidade antiga e a regar as ervas daninhas que teimavam em crescer nas brechas dos passeios. Um dia atirou-se da janela do primeiro andar e partiu uma perna.
Durante a convalescença, chegou ao bairro um médico de meia-idade, sóbrio e barbudo, que se prontificou a ajudar quando soube do raro caso da jovem.
Em duas semanas curou-lhe as febres delirantes e outras febres também, pois afinal de contas o mal da menina era de amor, como já dizia a vizinha ao fim da rua, do alto dos seus 80 anos, que frequentava a casa das Magias das Áfricas, na Camilo Castelo Branco, anunciada na rádio por mulheres e homens de origem duvidosa. "O Mundo está perdido!", ouviam-na gritar, por vezes, em momentos de lucidez, quando se recusava a acreditar que ela própria alguma vez pudesse ter participado em sessões de espiritismo e outros ismos afins. Mas era num transe que seguia o caminho habitual de casa até aquele andar luminoso, no prédio ao lado dos bombeiros, que anunciava o fim de todos os males, e a felicidade eterna.

3 comments:

james emanuel de albuquerque said...

Escreves muito bem!
Estou conhecendo agora este mundo novo dos Blogs e pretendo saborear seus textos.
Um abraço.

Anonymous said...

"por mulheres e homens de origem duvidosa" ?

W said...

Obrigada, James!

Anónimo, é uma história.