É preciso
Queria ser natural, e contar-te como as flores são bonitas depois da chuva, como a cidade brilha saltitante nas cores do Sol, como a calçada parece deslizar sob os teus pés quando não sabes por onde vais...
Natural, sem mãos de vergonha na cara, sem travões na língua vermelha, sem segundos pensamentos.
Natural, sem gestos calculados, sem palavras medidas, sem olhares estudados.
Mas eu.
Natural, não. Nunca. Eu sempre aquela coisa nojenta repelente asco. Eu sempre eu sem ser eu e cantos mal iluminados nos quartos do meu cérebro. Eu sempre murros invisíveis contra paredes imaginárias. Eu sempre eu, infelizmente.
Mãos estendidas mãos em concha mas eu não sei, eu não sei dar.
E talvez seja a chuva ou a ventania ou gente, mas não há gente dentro de mim.
Talvez seja só, sim, isso, mas eu... que hei-de fazer eu com isso? Esse sabor indizível por trás das costas da língua, por debaixo, e dos lados...
É-me amarga a memória do que fui. Do que se calhar sou, do que posso voltar a ser. Gostava queria conseguir poder matar espezinhar essa voz dissonante. Queria furar-lhe os olhos, partir-lhe os joelhos, cortar-lhe o pescoço, arrancar-lhe as unhas uma a uma.
Triturar-lhe os ossos.
Rasgar-lhe os músculos.
E enrolá-la numa bola atirá-la para longe para muito, muito longe, para sempre longe. E odiá-la de longe, e fazer-lhe manguitos e gritar-lhe que se vá embora, que não volte, e chamar-lhe nomes feios.
Mas ela volta. Volta sempre, arrasta o manto escuro pelo chão do meu quarto, senta-se à beira da cama, dá-me palmadinhas nos ombros, sorri um sorriso desdentado e estala os dedos magros e assobia como um rapaz. E eu digo-lhe que sim, está bem, como queiras.
E ela adormece aninhada nos meus lençóis.
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